Todo povo tem suas lendas. Elas falam de homens que forjam as nações. Nós também temos nossos heróis. Este final de século mostra a unanimidade da importância política do largo senador Antonio Carlos Magalhães. Mas é qualidade das lendas crescerem com o tempo. E o poder de ACM não é exceção. Conforme o tempo passa, evoluem e crescem as histórias sobre o senhor feudal dos baianos. Assim é o caso dos Arquivos de ACM. Muitos dizem que esta parte não é lenda, é apenas a verdade com tintas fortes. Mas a mistura de verdade e fantasia é o tempero da boa lenda. O fato é que, entre um feriado e outro, nas ladeiras do Pelourinho, sempre tem alguém comentando sobre os Arquivos de ACM e a sabedoria do homem que soube colecioná-los. E olha que lá tem muito feriado.

Os Arquivos têm lugar físico. O imaginário popular os situa numa sala escura nos fundos do palácio do governo. Uns dizem que seu único acesso é por uma porta secreta no gabinete do governador. Através de corredores labirínticos, o velho ACM pode alcançar a sala dos Arquivos. O lugar não impressiona pela limpeza ou luxo. É uma simples sala, com mesa e cadeira, repleta de prateleiras, estas cheias de documentos de diversos formatos. São fichários, cadernos de anotações, folhas grampeadas, livros, documentos encadernados, textos mantidos juntos por elásticos ou singelos barbantes. Foram gerados por um exército de investigadores competentes, mas de quem nunca foi cobrada a padronização dos relatórios. Cobrou-se sim, o valor das informações que hoje repousam cobertas de pó. Uma pequena janela circular no fundo da sala, no alto, fornece a iluminação durante o dia, sob a forma de um feixe de luz que percorre as prateleiras conforme o sol se desloca, formando belas e tristes imagens, combinando documentos, prateleiras e a poeira que teima em ficar em suspensão. Difícil não plagiar (sem dúvida piorando) as imagens de Saramago para sua Conservatória Geral.

Mas o que tem nesta masmorra de celulose? O que de valioso reside neste lugar solitário, freqüentado pela imaginação e o medo da classe política brasileira? Reza a lenda que, nestes documentos, ACM acumula informações sobre tudo que seus oponentes fizeram em suas vidas e que pode ser usado contra eles no duro jogo político brasileiro. A cada ministro que cai num escândalo, sempre há quem diga que o boato ou a oportuna informação que chegou à imprensa, teve origem naquela sala empoeirada. Ali encontram-se preciosidades. As famosas pastas azuis que Collor levou para o fatídico último debate com Lula, dizem, saíram direto dos arquivos para os estúdios onde o debate se realizou. É como se os aparentemente poderosos do país, fossem movidos por cordões - como marionetes que são - cujas pontas estão nas informações contidas na sala dos Arquivos de ACM.

Com o tempo, o velho senador desenvolveu peculiar senso de humor. Por exemplo, sobre o presidente, ele gosta de guardar as contradições entre, o que ele dizia antes de ser presidente, e o que passou a dizer depois de apadrinhado pelo PFL. No silêncio do aposento, o esgar de sorriso do grande ícone dos baianos saboreia a ingenuidade do sociólogo que outrora se disse de esquerda.

Nos últimos dias, numa das, hoje, raras visitas de ACM ao seu recanto predileto, o mais poderoso homem do Brasil se deleitou em preencher do próprio punho mais umas linhas sobre o permanente candidato da oposição para a presidência da república. Meticuloso e disciplinado, uma vez mais ele repete para si mesmo; - Ninguém sabe, um dia pode ser útil. O texto é simples e direto: - 18.10.99 O líder da oposição, Luiz Inácio Lula da Silva se une a ACM para conclamar as elites brasileiras a lutar contra a pobreza!

ACM olha o que escreveu, pensa um pouco e o riso explode em seu rosto. As gargalhadas vão aumentando na sala vazia. O velho não contém o comentário em voz alta: - Eu? As elites brasileiras? O PT? Juntos contra a pobreza? Só o Lula pra entrar nessa!

As gargalhadas fazem vibrar as prateleiras e mais um pouco de pó despenca para compor o sombrio cenário nacional.

- Tirésias da Silva -

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20outubro1999
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