A Carta a El-Rei e a CPI

Luiz Paulo Viveiros de Castro
colaborador

No início do século XVI, no auge da expansão marítima portuguesa, a corrupção na administração pública colocava em risco o sucesso do enorme investimento que se fizera, ao longo de várias gerações, no desenvolvimento da indústria naval. De nada adiantavam as contínuas melhorias tecnológicas na construção de naus e na arte da navegação, atingindo-se terras cada vez mais distantes e com crescente capacidade de carga, se a tripulação não era abastecida de gêneros suficientes para enfrentar os longos períodos no mar, apesar da Fazenda Real destinar os recursos necessários para a alimentação e os cuidados dos embarcados. Além do roubo puro e simples que capitães e mestres faziam, guardando para si a melhor parte dos alimentos destinados à marinhagem e às tropas – lembrando que um galeão da carreira das Índias chegava a carregar quase mil pessoas  –, outro problema sério era o excesso de carga embarcada além da previsão oficial, já que os mestres tratavam de carregar por conta própria grande quantidade de vinho para vender aos marujos, o que lhes garantia grandes lucros. Pelos idos de 1520, a corrupção era tanta que os mestres substituíam as pipas de água destinadas à tripulação por suas próprias pipas de vinho destinadas à venda, causando a doença e a morte de dezenas de tripulantes pela sede. A Coroa, preocupada com o prejuízo, logo editou normas determinando que todo embarque fosse fiscalizado pela Guarda Real, impedindo que os Mestres e Contramestres continuassem com o seu lucrativo contrabando. Apesar da boa intenção do legislador régio, a coisa não funcionou, como se depreende da "Carta de Lopo de Azevedo a el-rei, a respeito da sua viagem na nau Santiago, capitaneada por Cristóvão de Mendonça", escrita em Cochim, em 10 de Dezembro de 1527. Lopo de Azevedo relata a el-rei que chegara a Moçambique "trazendo toda a gente doente, sendo já mortos cinqüenta e oito pessoas" e que "de assim adoecer esta gente e morrer foi muita causa a sede", por "não trazerem as naus abastança d´água". E Lopo de Azevedo foi sincero com seu rei: "Essas guardas que lá põem no porto ao carregar das naus lhe descubro que é muito vosso prejuízo e em vez de as guardarem que as não carreguem de vinhos elas vêm mais carregadas porque eles vendem as licenças das pipas a três e quatro cruzados e os mestres e contramestres por encobrir as guardas, que não pode isto ser sem o eles verem, trazem as que dantes traziam e outras mais porque tudo pende sobre as guardas que lá ficam e assim aos capitães não se lhe tolhe trazerem as que querem ... e as naus não vêm por isso menos carregadas senão mais e Vossa Alteza é pior servido". E Lopo de Azevedo concluiu com um conselho ao rei: "Deixe antes o carrego disso aos mestres como dantes era e serão menos ladrões e furtar-se-á menos".

Hoje, quase quinhentos depois, o hábito de se utilizar de instrumentos originalmente destinados a coibir uma ilegalidade para se praticar outras ainda maiores continua em voga nesta terra habitada pelos descendentes dos guardas, mestres e contramestres do tempo de D. João II. Depois do escândalo do "propinoduto", onde funcionários públicos cuja função é a fiscalização do recolhimento de tributos foram flagrados enviando milhões de dólares para contas no exterior, uma nova modalidade do uso do poder de fiscalização para amealhar recursos ilícitos ganha destaque na imprensa: as Comissões Parlamentares de Inquérito. A utilização das CPI´s como instrumento de extorsão não é exatamente uma novidade no Estado do Rio de Janeiro, tendo servido para o enriquecimento de alguns notórios parlamentares já há alguns anos. Apesar da prática ser volta e meia denunciada pela imprensa, como no famoso caso da "CPI da Mineração", que ante a voracidade de seus integrantes mereceu a alcunha de "CPI da Mineiragem", por analogia à modalidade de extorsão policial conhecida como "mineira", o desvio de conduta de seus praticantes nunca mereceu uma investigação mais séria, seja por parte da polícia, do Ministério Público ou do próprio Poder Legislativo, em princípio o maior interessado em impedir que uma prerrogativa parlamentar seja transformada em instrumento de extorsão. Se a polícia pouco ou nada pode fazer num sistema constitucional que a mantém totalmente subordinada e dependente do Poder Executivo e o Ministério Público Estadual continua ignorando o poder e a independência que lhe foram conferidos pela Constituição de 1988, preferindo manter a antiga subserviência aos governantes, cabe à Assembléia Legislativa ouvir o conselho do antigo navegador. Se não querem expulsar do seu convívio os mais que conhecidos achacadores, que pelo menos não autorizem a criação de novas CPI´s, pois assim "serão menos ladrões e furtar-se-á menos".


envie este artigo a um amigo

envie agora seu comentário sobre este artigo

veja outros artigos da seção extra

homepage Polemikos

11setembro2003
Copyright © [Polemikos]. Todos os direitos reservados.