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DEDO, A LUA, A FEBRE ... A cena é de um dos filmes do pândego grupo inglês Monty Python (o nome do filme, desculpem, não me lembro agora) passado nos tempos da Távola Redonda: em dado momento, o velho Rei Arthur mostra a seu jovem herdeiro, louro e de cabelos encaracolados, a bela paisagem que se mostra além das janelas do castelo real, feita de belas colinas, prados, lagos, rebanhos, muralhas, aldeias, cidades, etc. Faz uma linda manhã de sol e a brisa que entra pelas janelas agita graciosamente as pesadas cortinas. O velho Rei diz ao Príncipe: "meu filho, um dia tudo isto será teu!". E o rapazinho: "estas lindas cortinas, papai? Que maravilha!" E sai aos pulinhos... É claro que o jovem mancebo não era propriamente "herdeiro" das tradições de masculinidade do bravo mundo celta e saxônico. Mas enfim... Na verdade, trata-se de uma adaptação cômica de um antigo ditado chinês: "o sábio mostra a lua; o tolo vê o dedo". Um e outro caso, contudo, fazem refletir sobre o atual debate sobre a "permanecência" da Febre Amarela no Brasil (sim, porque ela jamais nos abandonou, de fato). Duas ordens de argumentos se impuseram, via senso-comum. Primeiro: a febre amarela resulta do fracasso da atuação dos órgãos de saúde, incapazes de realizar aquilo que os consagrou ao longo da história. Segundo: a febre amarela advém da crônica falta de verbas e do sucateamento do setor saúde, promovidos historicamente pelos governos. Emanam de tais explicações, um tanto simplórias na verdade, propostas tais como o afastamento do Estado, o recurso ao mercado, o privilégio "sagrado" da opção individual, além de certos discursos ideológicos e catastróficos. Tudo isto, contudo, parece incapaz de dar conta da dinâmica da vida social, no que diz respeito à maneira como as doenças, entre elas a febre amarela, se produz, se distribui, se manifesta e se controla na natureza e nos grupos humanos. Ah, os grandes feitos da antiga saúde pública oswaldo-cruziana! Sempre lembrados, foram entretanto obtidos através de medidas fortemente autoritárias. Hoje já não é possível forçar a entrada nas residências e nos locais de trabalho e intervir atabalhoadamente nas cidades como nos idos de 1900. Melhor para a população, sem dúvida. Entre a febre amarela e a democracia, ou, pelo menos, o mínimo respeito pelo modo de vida das pessoas, há escolhas a fazer? Assim é que os modelos idealizados para uma realidade distante e ignorada por seus formuladores já perderam sua força, tanto política, como técnica. A população já não acredita neles, ou por outra, no máximo os tolera quando não há outras alternativas disponíveis. Outro aspecto a ser considerado, é o impacto das tecnologias sobre o controle da febre amarela. Primeiro, naquilo que se refere aos processos e produtos que possuem ação direta sobre o controle da doença, viabilizando-o de forma imediata. Segundo, naquilo que se refere às tecnologias desenvolvidas para outras finalidades e que podem afetar o curso natural da doença. No caso da febre amarela, que nos ameaça terrivelmente com sua urbanização, é bastante notório o impacto dos artefatos de vidro, plástico, borracha e seus derivados, dotados de capacidade de reter água e não se degradar, a não ser em prazo muito longo, aspectos desconhecidos no passado. Sua interferência no controle de uma doença que depende da água parada para se propagar é bastante óbvia. Mudaram também e muito - os atores sociais. Não há como negar uma tendência universal de organização de interesses, localistas ou não. Existe até mesmo uma autêntica a "perversão" de tais tendências, como acontece na Colômbia e mesmo em grandes cidades brasileiras: a entrada em cena do crime organizado como ator social, provendo a sociedade de benefícios sobre os quais o Estado se omite, cobrando, entretanto, onerosas contra-partidas. A experiência registrada hoje nas favelas do Rio de Janeiro, por exemplo, é de submissão das equipes de saúde aos «comandos» do tráfico de drogas, seja os agentes de controle da dengue, da vigilância sanitária, dos programas de saúde da família, etc., impedindo, além do mais, taxativamente, as tentativas de mapeamento, instrumento indispensável para a programação das medidas de controle. A noção de direito à saúde, antes talvez impensável face a determinadas situações de risco à saúde, como nas epidemias, adquire nos dias atuais novas nuances, afastando a ação estatal do caráter de concessão com que era vista anteriormente, mas também recusando a intervenção invasiva e o abuso de poder. Assim, não adquirir a febre amarela passou também a ser um direito, que entretanto não anula outros direitos sociais já assegurados. Concluindo, retomam-se as questões preliminares: a Saúde Pública faliu? Os governos não fazem o que deviam? O problema da febre amarela é uma equação resultante do descontrole de vetores, de hospedeiros humanos e primatas e do ambiente natural? Polarizar a questão, conforme aprecia o sensocomum, não só encobre a verdade como empobrece a discussão, leva ao risco de culpabilização da vítima e até mesmo ao aprisionamento nas malhas de um discurso ideológico, sem maiores consequências. É preciso avançar a vista um pouco além do jarro de flores sobre o qual o mosquito celebra suas núpcias e recusar-se ao papel de trêfego principezinho, para tentar compreender a vasta e complexa paisagem modulada pelas transições políticas, culturais, tecnológicas, etc. Só assim será possível obter respostas adequadas para (mais) esta febre que nos assola. Flávio
A. de Andrade Goulart |
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