SAÚDE: OUTROS 500

De que adoecemos e morremos nos últimos 500 anos? De muitas coisas: flechadas de índio, arcabuzadas portuguesas, pestilências européias, febres tropicais, fome, doenças endêmicas, violências diversas. A lista não acaba aí, mas serve como um resumo mórbido deste cinco séculos de Brasil. Só para ponderar adequadamente este rol inglório: se colocarmos de uma lado as flechas e as febres e, de outro, os arcabuzes e as pestilências, esta última dupla se mostrará intensamente triunfante neste campeonato de morticínio, principalmente graças ao seu primeiro componente.

Mas, para o futuro, o que nos aguarda? Serão realmente «outros 500»? Tal questão, na verdade, tem provocado a curiosidade de médicos, epidemiologistas, economistas e outros interessados em saúde, não só em relação ao Brasil mas ao mundo como um todo, merecendo até mesmo o apoio financeiro do Banco Mundial para esclarecê-la.

Evidentemente, é difícil, senão impossível, estabelecer um panorama para mais 500 anos, mas, seguramente, para as próximas décadas, alguns cenários já podem ser vislumbrados. Estudos realizados pela Universidade de Harvard, sob os auspícios do Banco Mundial, devidamente adaptados a nossa realidade, têm mostrado, por exemplo, que algumas causas «clássicas» de mortalidade no terceiro mundo, como as doenças infecciosas, as condições mórbidas do período peri-natal e a própria desnutrição tendem a se reduzir expressivamente. Mas é cedo para comemorar: em seu lugar ascenderão as doenças degenerativas, geralmente decorrentes de hábitos pouco saudáveis de vida (fumo, estresse, sedentarismo), as violências de toda ordem, a AIDS, entre outras. E tem mais: as doenças psiquiátricas, particularmente a depressão, que têm sido subestimadas nas estatísticas de saúde se tornarão cada vez mais freqüentes e trarão cada vez mais despesas aos sistemas de saúde. As desigualdades entre famílias, comunidades e regiões pobres e ricas continuarão marcantes e não há indícios que se reduzirão substancialmente. Mesmo no caso das doenças crônicas e degenerativas, como o enfarto do miocárdio, o acidente vascular cerebral, o câncer, a diabete e outras, consideradas indevidamente como decorrência do "desenvolvimento" das sociedades, a tendência é para o aumento justamente entre as populações mais pobres, não só na sua incidência como nas chances de sobrevivência.

A questão dos estilos de vida é outro problema sério que nos desafia e continuará desafiando no futuro próximo e remoto. O tabagismo, por exemplo, continuará contribuindo para a morte de mais gente do que qualquer outra doença, inclusive a AIDS. A estimativa para as próximas décadas é de que entre as cinco primeiras causas de mortalidade, pelo menos três constituem decorrência direta ou indireta do uso do fumo. Mesmo no caso das doenças transmissíveis em geral, que apresentem tendência geral à redução, o quadro não é uniforme, como no caso da tuberculose, atualmente tendendo ao crescimento, principalmente pela sua associação com a AIDS.

No caso brasileiro, duas situações merecem especial destaque, pelo seu impacto atual e perspectivas futuras de crescimento. Uma é a violência, que tem sacrificado milhões de brasileiros, também com forte tendência ao incremento em suas diversas modalidades - trânsito e homicídios, principalmente. Uma informação de pasmar: já a partir dos cinco anos de idade (quando as crianças começam a sair à rua...) a morte por causa violenta assume o primeiro lugar nas estatísticas. Outro problema é o das doenças chamadas «reemergentes», que alguns preferem chamar pelo neologismo de «permanecentes», como é o caso do dengue, da febre amarela e de outras, que resultam de uma interação mal planejada e desastrosa entre o homem e o ambiente natural.

Entre tantas notícias ruins, pelo menos uma nos redime: a expectativa de vida já vem crescendo no Brasil e continuará crescendo, prevendo-se que em 20 anos possa estar próxima aos 80 anos. Isto não significa, contudo, que viver mais seja viver com mais saúde. A situação, hoje, em nosso país é de profunda incerteza com relação ao futuro de nossos velhinhos, tanto quanto o de nossas crianças pobres. Com efeito, nossos serviços sociais e de saúde não estão adaptados para atendê-los, os profissionais não são formados na ótica de uma sociedade «envelhecida» (por exemplo: nas escolas médicas e de enfermagem, a carga horária de pediatria – sem dúvida importante – é incomparavelmente maior do que a de geriatria e outras disciplinas que se dedicam ao idoso) e as políticas de governo ainda não parecem ter se dado conta que estamos agora não mais diante de um baby boom, como nos anos 70, mas sim de um autêntico old people boom, para continuarmos a usar uma linguagem colonizada.

E por aí se vai. Resta saber o que pode ser feito diante de tal problemática? Uma coisa é bastante evidente: embora em graus variáveis, grande parte dos problemas que nos afetam e continuarão a afetar são situações evitáveis. Não são fatalidades, portanto. É fundamental que haja mudanças significativas não só na formação dos médicos e dos enfermeiros, mas também da maneira como se organizam os serviços de saúde, aumentando seu poder de resolução e as facilidades de acesso e, mais do que tudo, mediante transformações das políticas públicas, que passem a ser voltadas para o bem estar social e a saúde. Políticas saudáveis, enfim.

Só assim poderemos aspirar, de fato, a conhecermos, na saúde, o outro lado da moeda, os «outros 500», expressão originária de uma anedota popular, mas que de maneira feliz nos indica uma maneira de pensar o futuro desta terra e de sua gente.

- Flávio A. de Andrade Goulart -
                colaborador

 
 

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16maio2000
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