A Guerra Honesta

Regulamento:
- não vale dedo no olho
- não vale chute no saco
- não vale puxar o cabelo
- não vale jogar boeing em arranha-céu

 

Acho que tudo começou naquela luta do Hollyfield com Mike Tyson. O Osama bin Laden deve ser fã ardoroso do boxe. Lá estava ele assistindo a luta de titãs: dois gigantes num embate magnífico regido pelas cavalheirescas regras de luta criadas pelos ingleses. De repente, Tyson se abraça com Hollyfield e, em mordida rápida e certeira, arranca-lhe parte da orelha. O gosto não lhe agradou, pois imediatamente cuspiu no ringue o pedaço do lóbulo auricular do adversário. Osama deve ter dado um pulo para trás de tanta surpresa. Ué, vale morder orelha? Quer dizer que pode passar por cima das regras? Foi naquele preciso momento que o sheik começou a engendrar seu ataque a Nova York. Ali ele percebeu que as regras não se aplicavam à guerra. 

Toda vez que algo monstruoso na história das guerras acontece, somos bombardeados (na história recente é comum que as monstruosidades sejam bombardeios não-metafóricos) com explicações e posicionamentos da imprensa e autoridades oficiais. Os pontos de vista variam, claro, dependendo de que lado estamos. Se somos os atingidos, as vítimas, o inimigo é covarde e o ato é de total infâmia. Mas, se é nossa turma que está bombardeando, mutilando e trucidando, matar milhares de pessoas é considerado puro heroísmo. Se a gente não pertence a nenhum dos dois grupos em luta, ficamos a mercê daquele que tiver a publicidade mais eficiente. Portanto, para entender melhor o que acontece, vale a pena lembrar um pouco da teoria da guerra e seus regulamentos (ou falta de). Vamos lá.

A regra - A regra básica é simples: "Vale Tudo". Qualquer ação é nobre se é eficiente para atingir o objetivo. Maquiavel e outros teóricos da arte de exercer o poder detalham os casos e a força que deve ser usada conforme a necessidade. É instrutivo o conselho de Maquiavel, em o Príncipe: "se você sabe que pode derrotar o inimigo, destrua-o e não deixe vestígios de sua força. Se, por outro lado, sabe que não tem poder para aniquilá-lo, negocie e, se for o caso, se alinhe com ele". Este é o pragmatismo do guerreiro inteligente.

Com o aumento da complexidade das sociedades e do relacionamento entre nações, a guerra teve ampliada sua dimensão. Ela não ocorre mais apenas nas trincheiras e através da troca de tiros. Seu espaço de ações cresceu. Se o poder econômico é forte e pode ser exercido, que seja feito. Na realidade, o poder econômico é o fim que justifica os meios. E por que deixar que as disputas evoluam até o ponto de ser necessária a intervenção militar? Um controle econômico bem feito se justifica pelo seu caráter humanitário: evita o derramamento de sangue! Entretanto, as estatísticas sobre esta linha de ação tendem a esquecer o mal que é feito aos poucos. Desprezam-se os mortos que ficam pelo caminho, decorrentes de controles econômicos quase-feudais existentes nas relações entre nações desenvolvidas e atrasadas. Os mais fortes costumam esquecer a regra maquiavélica de fazer todo o mal de uma vez e o bem aos poucos. O usual é fazer o mal aos poucos e concentrar mais mal em momentos de crise.

Economia - Os japoneses costumam dizer que a economia é uma guerra. Hoje, as guerras são vencidas e ganhas nesta área. Pouca coisa sobra para os campos de batalha. E realmente vale tudo! Os países soberanos protegem suas economias e cinicamente advogam que os outros países abram seus mercados para seus produtos. Os franceses protegem seu cinema, sua agricultura e qualquer setor que considerem estrategicamente importante. O povo francês dá preferência aos produtos franceses. A França se recusa a aderir à Microsoft. As empresas públicas tem que usar Linux. Por que dar moleza ao software americano?

Os EUA, com um belo discurso capitalista liberal, protege seus laranjais na Flórida e sustentam com subsídios sua obsoleta siderurgia. O Japão se debate para impedir que sua indústria de produtos de informática seja controlada pelos EUA.. O Canadá gemem como loucos para impedir que o Brasil, através da Embraer, conquiste boa fatia do mercado de aeronaves de pequeno porte. Os canadenses resolveram o problema: direcionaram 3 bilhões de dólares para garantir a competitividade de sua empresa Bombardier. E assim caminha a economia com suas elegantes regras de competição recomendadas por organizações internacionais, oportunamente controladas pelos países que estão no topo da lista dos bem sucedidos. E a gente fica ouvindo discursos sobre o livre trânsito de capitais, livre competição e outras balelas. Os tolos que as sigam.

Relações entre países - Neste momento de tensão com o oriente muçulmano é bom lembrar que o maior aliado árabe dos EUA, a Arábia Saudita, que contribui com 10 milhões de barris/dia para suprir a sede de petróleo dos americanos, é uma ditadura disfarçada em realeza perdulária. O governo saudita não respeita direitos humanos em geral e direitos das mulheres em particular, mas, mesmo assim, é bajulada à exaustão pelos americanos. Hoje, esse país agraciado com enorme riqueza do petróleo, foi colocado na posição de devedor mundial e vive nas mãos dos bancos americanos. Dizem por aí que os sauditas ainda pagam a conta da Guerra do Golfo: cuja fatura de 300 bilhões de dólares os americanos apresentaram aos árabes depois de livrá-los do perigo Saddam Hussein. Notem a assimetria: enquanto os EUA fazem vista grossa para os sauditas, a pobre (literalmente) Cuba, é tratada a pão e água, seu povo é deixado na miséria, tudo porque não aceitam as regras estabelecidas pelos EUA. Dois pesos, duas medidas.

Fazendo a guerra - Osama bin Laden, depois da instrutiva luta de Tyson,  desregulamentou a guerra e perpetrou mais um magnífico ato de genocídio a ser acrescentado ao já obscuro currículo da humanidade. O World Trade Center já tem lugar assegurado ao lado de Hirochima, o bombardeio de Berlim ou Guernica. A insânia humana vai continuar. A história está acelerada nestes tempos, a CNN, neste exato momento que escrevo, noticia o início dos ataques norte-americanos ao Afeganistão. Em nossa impotência, resta apenas aguçar a crítica e recusar as simplificações que proporcionam falsa tranqüilidade a nossas consciências. Vai continuar valendo qualquer coisa. Pelo menos, fiquemos atentos. Não nos deixemos levar pelas manchetes dos jornais. Não há segurança para identificar o mocinho. Se quisermos ter alguma certeza, podemos adotar a solução prática de escolher um lado para torcer a favor. Aí, ficará fácil decidir. Aquilo que for a nosso favor é legítimo, é justificável. O que o oponente fizer é vil, é covardia.

- Ernesto Friedman -

 
 

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07outubro2001
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