Desconstruindo Harry

 
  Woody por partes

A carreira de Woody Allen construiu-se sobre o humor irreverente, debochando dos costumes, convenções e, sobretudo, das fragilidades humanas, que sua própria imagem sintetizava. Daí, Allen foi cada vez mais se Bergmanizando, retratando em sua obra, suas angústias (e de todos nós, até certo ponto) e ansiedades. Em certas ocasiões, chegou a ficar um tanto o quanto chato. Com o passar do tempo, era nítida a tendência do diretor Woody Allen para discutir, mais e mais, a criatura Woody Allen. Este estilo superpessoal (literalmente!) de fazer cinema é um caminho arriscado para trilhar dentro da indústria cinematográfica americana. Tanto é que o mercado dos EUA não aceita bem o baixinho neurótico. De nossa parte, pelo menos, sua fidelidade a uma proposta de cinema sem concessões comerciais, já o faz merecer respeito.

Allen vem se concentrando em retratar seus problemas pessoais, seus relacionamentos com as mulheres e, ultimamente, sua relação com a meia-filha dezenas de anos mais nova. Mas ele também varia. Teve um momento particularmente feliz no humor de Tiros na Broadway. Houve a boa tragédia grega Poderosa Afrodite, onde ele volta ao tema do amor do velho Allen pela mulher mais jovem. E, agora, veio desembocar, com muito acerto, em Desconstruindo Harry, onde a combinação de humor e crítica a sua vida pessoal (e de todos nós, até certo ponto) atingiu equilíbrio surpreendente.

O foco do trabalho de Woody Allen é a radicalização da proposta de discutir a si mesmo. Em Desconstruindo Harry, Allen parte para mostrar ele falando dele mesmo. A construção do filme coloca uma cadeia de realidades que atinge algo próximo da genialidade. Se a vida de Woody Allen é interessante para a mídia. Se o tema de seus filmes, focados na vida de Allen, é interessante também. Que tal criar um filme onde um escritor coloca suas relações pessoais em seus livros, exatamente como Woody Allen faz no cinema? Esse emaranhado de realidades e personagens dissolve a separação entre realidade e fantasia, entre vida e cinema. Cria um tipo de arte onde a vida real faz parte do roteiro. Equipara o mundo retratado no cinema à realidade percebida sobre a vida de Allen. Como se o cinema pudesse ser um bom espelho de nossas vidas e, que tal?, nossa vida (de todos nós, até certo ponto) pudesse imitar algo do cinema.

O filme exorciza todas as tradicionais aflições de Woody Allen: seu relacionamento com mulheres mais jovens, antigas esposas, religião, família e vai por aí. Allen aponta os problemas, os critica e, logo em seguida, os desconstrói, criticando a crítica, através de comentários ácidos e boas piadas como há muito não se via. A propósito, as piadas do filme são tão boas, que o filme se sai bem, mesmo na avaliação de um espectador mais superficial, que não foi em busca de um filme "cabeça".

Desconstruindo também possui pequenos detalhes cativantes. A brincadeira com o Robin Willians "out of focus" é deliciosa. Agora, ninguém pode dizer que um filme de Woody Allen não tem efeitos especiais! Porém, o estilo de edição usado por Allen é o destaque da embalagem do filme. Não é algo necessariamente agradável. Assim como também não foi aquela vez que Woody Allen experimentou uma câmera parkinsoniana que chegava a provocar enjôo no espectador mais sensível. Mas o efeito agora é melhor. Allen usa a edição com a montagem sem silêncios entre as falas, a maneira que os jornalistas usam para enxugar das entrevistas os momentos de silêncio dos entrevistados. O uso desse formato no filme destaca os diálogos. O efeito é curioso e reforça a desconstrução do escritor Harry Block. Ainda mais que implica em reduzir o tempo do filme, o que deveria ser um problema para o diretor, que vem sendo acusado de fazer filmes de curta duração. Vocês acham que Mr. Allen está preocupado com isso?

O elenco traz Demi Moore trabalhando de graça (para seu padrão de preço) e, para representar a mulher jovem e bonita, após Mariel Hemingway e Mira Sorvino, ele traz a bela loura Elisabeth Shue de Leaving Las Vegas. Woody Allen é que é feliz de poder fazer este culto à deusa mulher - como o próprio Harry ensina a seu filho - o que, até certo ponto, seria um desejo de todos os homens.

-Eugenia Corazon-

 
 

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02julho1999
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