Filme: A Vila, M. Night Shyamalan
cinema
A Vila
The Village
ensaio sobre o medo
é uma foto do filme?
são mexicanos cruzando a fronteira?
são terroristas preparando mais um atentado?
- eugenia corazon -
Se você não gosta de ler sobre filme que ainda não viu, acho bom parar por aqui. Deixe-se guiar pelo medo e não dê nem mais um passo adiante! Ainda mais quando se trata de um filme que pede por favor para que ninguém conte o final.
O filme é A Vila, do diretor M. Night Shyamalan, que traz em seu currículo o magnífico Sexto Sentido e os menores Corpo Fechado e Sinais. O padrão era que o diretor vinha afundando na prepotência, com obras tanto mais pomposas quanto vazias. Se especializava em fazer filme “de susto, classe B, com ator famoso”, fórmula eficiente para minimizar o risco do fracasso, mas que não garante a qualidade do filme, como de fato aconteceu em Corpo Fechado e Sinais. Parece que neste quarto filme Shyamalan se reabilita. A Vila não é uma jóia preciosa, mas tem seu brilho. Classifico A Vila como uma obra “cebolar”, isto é, podemos ir descascando o filme e encontrando novas camadas de interpretações. É filme que podemos ver segundo vários pontos de vista, o que não é nada de especial pois talvez tudo na vida se enquadre nessa categoria. Conforme avançamos em direção a novas visões de A Vila, fica evidente que o filme tem seu valor ou que eu estou cada dia mais delirante. Reparem que as duas hipóteses anteriores não são excludentes. ?
A primeira camada de interpretação para A Vila é vê-lo como mais um exercício de Shyamalan para brincar com sustos. Ele usa e abusa de longos planos de deslocamento laterais da câmera onde alguma coisa pode aparecer ... ou não. Esta brincadeira dá o medinho que a platéia gosta de curtir. O diretor também exercita seu grande trunfo, usado com maestria em Sexto Sentido: a passagem do vulto no fundo da cena. Já é uma marca do diretor. A Vila tem um excesso de cenas com dilatação do tempo destinadas a criar a tensão do suspense (a grande criação de Hitchcock) e é o ponto mais fraco do filme, que fica um tanto monótono pela repetição do truque, pois não há tanta coisa para nos assustarmos.
Podemos ver A Vila de outra maneira. O medo também está dentro da história que acontece no filme. Os cidadãos do bucólico povoado vivem como numa Walden reeditada. Ali estão a fartura e a felicidade propiciadas por uma vida simples, longe da tecnologia, do dinheiro, da violência de nosso planeta. Para os cidadãos da Vila, o diferente é rejeitado, mesmo que seja apenas a mênstrua cor vermelha, prenhe de significados ruins. Upa! Entretanto, vida onírica tem seu preço. Há o medo permanente daqueles sobre-quem-a-gente-não-fala, dos de fora, daqueles que vivem além dos belos gramados e frondosas árvores. Aqueles que nas noites são mantidos afastados pelo fogo das tochas. Um acordo mantém as criaturas das matas longe do vilarejo e os moradores afastados das florestas. O monstro é verdadeiro e chega a entrar na Vila para despelar animais ou rosnar dentro da noite. Afinal, o quê ou quem estraga a mesa farta da refeição dos moradores da Vila, sua tranquilidade, ingenuidade e inocência? A partir desse cenário Shyamalan, que dirige e escreve o roteiro, recorreu aos manuais de livros de histórias. Havia de criar um herói, um agente do mal, um desafio, uma aventura, para a história fluir. Lucius Hunt, interpretado pelo sempre bom Joaquin Phoenix, é o candidato natural para ser o herói da odisséia ao mundo além das árvores. Ele destoa da acomodação geral dos outros da vila. Ele é ousado. É o herói que desafiava os monstros quando criança. Mas o protótipo de herói não vai muito longe. O roteiro de Shyamalan tem o mérito de praticar uma bela inversão de história. Noah Percy (Adrien Brody, de O Pianista) ama Ivy, que ama Lucius. Por ciúme, Noah ataca Lucius que fica ferido e precisa dos remédios que devem ser buscados fora da Vila, pois a vida simples não dispõe de bons remédios. Lucius é praticamente retirado da história e Ivy Walker (magnificamente bonita Bryce Dallas Howard) assume seu destino de heroína. A mulher frágil e cega é que vai fazer a excursão ao exterior. Mais politicamente correto e fabuloso (de fábula) não podia ser. Ivy, movida pelo amor, vence terríveis obstáculos (ela chega a matar um monstro) e desvenda o mistério da Vila. Entretanto, Shyamalan não está muito disposto a produzir finais felizes. A saga de Ivy só serve para perpetuar a farsa que mantém a Vila. O resultado da ousadia de Ivy reforça a mentira mantida pelos mais velhos, que controlam a comunidade. Tudo feito pelo bem do povo.
Tá bom, então podemos ver o filme como uma bela fábula? Mas, a fábula não estaria se referenciando ao momento atual da civilização americana? É difícil criar uma história sem se deixar influenciar pela vida a sua volta. Arrisquemos ir para outro nível de interpretação do filme. Que tal: Shyamalan faz uma bela metáfora do medo que os governantes vendem grátis para os cidadãos, usando como matéria prima o medo vendido nos cinemas. Por certo vocês conhecem o indicador de nível de risco de terrorismo exibido constantemente nas telas das tevês dos EUA? E nossa versão tupiniquim do medo da candidatura de Lula para presidente? A idílica civilização americana, na fartura de um carro-e-um-macfritas-para-cada-cidadão, já vinha descolando do resto do mundo. Após o 11 de setembro, a paranóia se acirrou. Os EUA se fecharam e cristalizou-se a visão de que lá fora vive um bando de árabes insanos, cobertos de panos, prontos para despelar o primeiro anglo-saxão que passar. Será que é exagero identificar que os moradores da Vila são típicos e rosados americanos típicos? Notem que não houve espaço para afro-americanos no filme de Shyamalan. E se olharmos a Vila como sendo uma metáfora dos EUA de hoje? A pureza, ingenuidade e fartura dos americanos se enquadram bem na proposta da Vila. Até a sexualidade contida dos personagens de Sigourney Weaver e Williant Hurt refletem bem o hipócrita puritanismo sexual americano. A inocência é a marca de um povo que foi convencido de que a guerra do Iraque é contra o terrorismo ou que tinha o objetivo de buscar as armas de destruição em massa de Saddam. Tudo não passa do eficiente medo que Bush incute nos cidadãos da Vila USA. E eles acreditam, qual as bobinhas crianças do filme, que brincam de jogar água uma na outra. Tenho de citar a antológia cena do filme de Michael Moore, Fahrenheit 9/11, em que um soldado americano, ainda inberbe, pergunta candidamente: "por que eles não entendem que viemos ao Iraque para libertá-los?" Por falar em Iraque, na hora da ameaça, o pai Edward Walker (Willian Hurt) envia a filha cega para a missão mais difícil. Pois é, os mais velhos, em geral, decidem que os jovens vão para os campos (digo, desertos) de batalha. Um momento marcante do filme é quando a heroína encontra uma criatura do exterior - que por sinal parece um latino - e diz que sua voz é “surpreendentemente doce”. Considerar que o estranho monstro do exterior pode ser gentil é uma brecha para o otimismo. Mas gostei do final pessimista em que o ato heróico, movido pelo amor, serve apenas para reforçar a mentira, manter os líderes e evitar o desmascaramento da farsa.
O filme “cebolar” de M. Night Shyamalan tem valor como fábula. Pode servir de modelo para algumas interpretações desse mundinho medíocre em que vivemos. Inicialmente, o filme será visto apenas como um exercício de sustos com final surpreendente. Entretanto, as fábulas são assim mesmo, elas ficam para serem recontadas e reinterpretadas mais tarde. Shyamalan se recuperou no meu conceito. Esperemos sua próxima produção.
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12.09.2004
Cara Eugênia,
Gostei bem mais do "Sexto Sentido". "A Vila" (que não é Sésamo) me decepcionou um pouco. Talvez por já ter ouvido muitos comentários "cebolísticos" dissecando-a, acabei encontrando mais graça nos comentários sobre "A Vila" do que no filme em si. Por isso, queria lhe agradecer (e acho que o diretor deveria fazer o mesmo) pela criatividade em descascar estas camadas todas pra gente.
Um abraço da leitora, Beth.
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