Um Ensaio Sobre a Cegueira

O famoso livro de José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira, disseca o que acontece com seres humanos quando é retirada a fina superfície de civilização que lhes recobre. Acometida de estranha cegueira, que se alastra num país, a população experimenta a deterioração das aparentemente estáveis regras do conviver. O livro é inquietante ao mostrar a situação terminal do relacionamento entre criaturas autodenominadas civilizadas. A História e Natureza, de mãos dadas, nos exibiram, recentemente, outro triste ensaio sobre a cegueira humana. Mas esse não foi ficção. Nova Orleans sofreu a passagem de um furacão, seguida do rompimento dos diques que mantinha seca a grande área da cidade localizada abaixo do nível do mar. A maior parte de Nova Orleans ainda está com água pela cintura. Dá para as pessoas ficarem em pé e andarem, mas lhes foram retirados todos os confortos de uma cidade, tais como luz, esgotos e um canto seco para repousar. O estudo de caso sobre a cegueira humana aparece na brutalidade das vítimas, que expostas a uma situação limite, enveredam pela luta primária por comida, saques e a vulgarização do estupro. Os mortos se amontoam. As estatísticas só são unânimes em dizer que os números deverão ser maiores do que o esperado. Do lado do governo – vale lembrar: o governo mais poderoso e bem equipado do planeta – a cegueira é contundente. O presidente Bush, preocupado com sua guerra particular contra o Iraque (que ele, em sua visão turva, disse ter terminado há mais de um ano), demorou a sair de mais outro período de férias e perceber o cataclismo que ocorria na cidade do Jazz. A incompetência do governo talvez provoque, dessa vez, alguma reação do povo norte-americano. Não se trata mais de bombardeio cirúrgico contra alguns árabes do outro lado do mundo. São americanos que estão morrendo pela paralisação de um governo e seu líder. Mesmo em se tratando e uma maioria de negros e pobres, que não parecem ser considerados por Bush como assunto de trabalho, o clamor da mídia e da população é alto.

No Brasil, a cegueira do partido do governo devasta a esperança daqueles que votaram em Lula apostando que sua mediocridade seria compensada pelo seu apreço pela ética. A cada dia rompe mais um dique que represava casos de corrupção misturando líderes petistas, políticos corruptos contumazes, doleiros e cafetinas. As ações do PT mereceram inicialmente generoso benefício de dúvida. Será que tudo que o grupo de Lula fez foi por considerar o sistema viciado e sem chance de cura? O governo precisava agir assim para não ser paralisado pela oposição. Entretanto, esta linha de argumentação se desmonta quando lembramos que o voto dado ao metalúrgico não foi por acreditar que ele seria um grande gestor, um executivo de alto nível para administrar o Brasil. Sua bandeira, e nossa aposta, é que o estilo poderia ser outro. Houve um aceno de seriedade, honestidade e princípios que obteve a simpatia de jovens, intelectuais e aqueles tantos que buscavam uma alternativa à esculhambação. Doce engano! Além de sermos bombardeados pela enxurrada de informações mostrando a avidez com que os petistas entraram no jogo sujo, somos obrigados a ver, com os olhos arregalados, a sujeira ética de Lula. Ele está cego. Não vê um palmo na frente do nariz. Para ele, tudo está bem. Os amigos envolvidos nas falcatruas sumiram do noticiário e não aparecem mais ao seu lado nas fotos. A sorte que o Brasil experimenta no cenário econômico de crescimento mundial - que fique registrado: o Brasil cresce aquém do que a média dos outros países da América Latina - Lula vê como grande obra de seu governo. Discursa e discursa inoculando a cegueira na população que já é politicamente ruim da vista. Lula diz que seu governo livrou o Brasil do caos. O delírio pode ser mais um sintoma associado à cegueira do presidente.

Fiquemos apenas com os ícones da falta de visão. Bush e Lula são farinha mofada do mesmo saco. São opostos de direita e esquerda exibindo defeitos tão próximos: ignorância, discurso superficial e desprezo pelos menos favorecidos. Para os dois, só importa a próxima eleição. Triste, pois não?

Deixo a seguir a idéia de roteiro para filme classe B. Imaginem um negão grande, tipo Bubba de Forest Gunp, nascido no Mississipi, cujo sonho era tocar blues em seu violão nas calçadas de Nova Orleans. Enviado para a guerra do Iraque, vira atirador de precisão com aqueles rifles sofisticados. Mirando a areia do deserto, sonha com seu rio e sua música deixada na Louisiania. Recebe uma carta do pai, que escreve de um abrigo em Houston, informando que sua casa não existe mais casa. Sua mãe morreu quando a água entrou na casa carregando tudo. Sua irmã mais nova, enlouqueceu, não se sabe se por ter de soltar a mão de sua mãe e vê-la ser arrastada pelas águas ou se por ter sido estuprada na fuga da cidade. Close no olhar do negro, que muda de meigo e distante para a frieza do serial killer que nasce. O resto é típico Classe B. O negão volta para os EUA, faz um estrago com seu rifle, caçando gente em alguma cidade americana, antes de ser abatido pela polícia sob o olhar complacente do policial (cabe usar um bom ator coadjuvante) que sabe que no fundo ele não era mau sujeito. Os créditos finais rolam na tela junto com um blues bem lento, um lamento, numa voz tipo B. B. King. Ao fundo, as águas do rio correndo lentamente ...

- Ernesto Friedman -


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11setembro2005
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