À Mulher de Burqa no Campo de Futebol *

Milla Kette
colaboradora

a partir de foto em www.feminist.orgSilêncio! Amordaçadas elas passam. Bocas costuradas, vontades domadas – assim eles pensam!  – violentamente esmagadas pela sociedade que as quer dizimar. "Mas como se farão mais fanáticos sem as mulheres de burqa?" –pergunto ingenuamente a meus botões silenciosos. Se elas não podem ser tratadas por médicos homens e mulheres são proibidas de trabalhar, como sobreviver num mundo masculinamente hostil? Os homens do Taliban pensam que no silêncio por trás dos véus não há pensamentos, revolta, ódio. Eles acreditam piamente que costurando as bocas, cobrindo os rostos, transformando-as em coisas sem forma, elas se encolherão mentalmente e recolherão também as vontades! Pobre Taliban irracional... Dentro dos turbantes não há muito, já se vê, pois que ninguém – ouviu bem, Mr. Bin Laden?! – ninguém domina o reino do pensamento. Esse é democrático por excelência e jamais um ditador externo ali reinará, por mais poderoso que seja! Porque eles negam-lhes educação depois dos 12 anos, crêem que elas param de pensar.

As mulheres de burqa encolhem-se externamente e cobrem-se com o véu da vergonha de não ser homem. As que se aventuram pelas ruas sem companhia masculina pertencente à família, podem legalmente ser chicoteadas, terem partes do corpo amputadas, ou mesmo mortas. Quietas, elas curvam-se ante a dor de calar e seguir, a dor de não ter direito sobre as próprias vidas. Elas não dizem palavra, mas as mentes trabalham mais que um formigueiro antes do inverno. As mulheres de burqa acocoram-se nas ruas poeirentas do Afeganistão e estendem as mãos à caridade alheia; disputam com animais o que lhes seria destinado e, miseravelmente triunfantes, carregam para seus filhos restos de pão mofado. Crianças no Afeganistão logram comer o que foi tirado de animais... As valentes mães cobertas pelo burqa da infâmia Talibanesca, não sentem vergonha por ter que pedir nas ruas. Elas se envergonham por verem seus filhos tratados pior que animais. Envergonham-se por não poderem trabalhar e trazer para casa um mínimo para que seus filhos, condenados à morte aos cinco anos de idade, possam quebrar essa sentença. A cada cinco crianças no Afeganistão, uma não completará o quinto aniversário. Essas são as mulheres que não choram a perda dos maridos engolidos pelas guerras constantes; elas choram no silêncio das noites a perda do calor, da comida, da coberta, da casa que com eles se foram, da liberdade fictícia de ir e vir que eles representavam.

As mulheres de burqa sussurram livros entre si. Agrupam-se em sua vida de sombra, tiram o véu da vergonha que não sentem e pintam as unhas, maquiam os rostos, escondidas dos mil olhos do Taliban, expondo aos espelhos o preço da adulteração de Deus. Cobertas dos pés à cabeça pela ignomínia da religião levada a extremos, elas escondem do mundo o que são, verdadeiras obras de arte esperando serem desvendadas, admiradas, reflexos de imagens fugidias. No entanto, são seus olhos apenas que vêem no espelho quebrado. Como um grupo de pássaros chilreadores, elas se reúnem no segredo de um quarto esquecido e alienam-se do mundo insano de pesadelo em que vivem. O pequeno quarto passa a ser a realidade que perderam, roubada pelos turbantes negros, as longas barbas manchadas de sangue de homens, mulheres e crianças. Ali, elas fazem de conta que os cadáveres que o exército do Taliban deixam expostos a céu aberto, são sementes caídas em solo fértil, que florescerão em profundos tons vermelhos. Vermelho, como o esmalte que espalham nas unhas irregulares, vermelho que desliza suavemente, em curvas elaboradas pelos lábios firmemente cerrados.

Estou confortavelmente sentada em frente à televisão. A tela expõe a imagem de uma mulher em Kabul, sendo conduzida até próximo a goleira do que um dia foi um campo de futebol. A câmera titubeia, testemunha escondida da monstruosidade de um regime totalitário que engole os direitos humanos, monstro nojento, de entranhas vermelhas do sangue dos inocentes. Pendurado à goleira, um boneco de teatro de fantoches – um corpo de homem balança molemente ao sabor da brisa. (Que horas são em Kabul?) Paralisados pelo terror que não querem admitir, meus olhos seguem a cena sem acreditar que é real. O mesmo soldado obriga-a a ajoelhar-se – representação máxima da humilhação, da perda do respeito ao ser humano, espelho do Taliban. O burqa esvoaça lentamente como uma bandeira pedindo paz – inútil. Ela espera, visivelmente sem compreender o que faz ali, ajoelhada num campo de futebol onde um homem pende da goleira, enforcado. "Onde estão os vinte e três homens e a bola?", ela pensa, confusa. Meus olhos seguem a cena como que fascinados pelo terror do que, não consigo crer, vai acontecer. Os segundos são rápidos, mas a cena se crava com ânsia de eternidade a minha memória visual, convulsionado minhas noites, amargando meu café adoçado com leite condensado, apertando minhas unhas no braço da poltrona como se fora minha própria carne. Quisera eu punir-me, por não estar lá, abraçando-a em toda sua fragilidade de mártir forcada! Outro soldado aproxima-se lentamente e encosta o fuzil na cabeça da mulher. Imagino a sensação do metal frio na cabeça dela, passando através do tecido do burqa. Milésimos de segundos e minha mente pede por clemência –que crime teria ela cometido, amordaçada, despida de toda dignidade sob o burqa? Os segundos continuam passando numa velocidade monstruosamente calma –prova de que Deus não pode mudar o que já passou. Um tiro e parte do cérebro dela voa, caindo no chão, há alguns passos. Meu rosto se umedece de lágrimas, mas meus olhos, teimosamente abertos, acompanham-na ainda. O corpo cai, imóvel, silencioso, um amontoado envolto pelo tecido do burqa que a cobre ainda, segunda pele. Meus dentes cravam-se nos lábios, o suficiente para sufocar um soluço e um grito de pavor. A mulher morreu em silêncio, sem esboçar uma única reação, ignorante do que ocorria a sua volta. Mas nem assim Bin Laden ou o Taliban possuem seus pensamentos. Ninguém jamais saberá o que se passou na cabeça dilacerada por um tiro à queima roupa. E, no entanto, a mulher de burqa triunfa em pensamento: a revolta dela agora mora em mim.

* O programa "Beneath the Veil -- Inside the Taliban’s Afganistan", apresentado por CNN, trata das atrocidades que comento acima: http://www.cnn.com/CNN/Programs/presents/index.veil.html

* National Review ( http://www.nationalreview.com ) publicou um texto excepcional do antropologista Stanley Kurtz –"Veil of Fears", 28/01/02, pg 36—onde ele observa que o uso do véu "é aceito por milhares de mulheres e homens muçulmanos como uma das chaves para sua maneira de viver" e que "o Taliban jamais se preocupou em reforçar suas regras [de uso do burqa] em áreas tradicionais".


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01.04.2002

Milla,

Confesso que me apertei pra não chorar perante tua eloqüencia.  Eu também assistí as mesmas imagens na televisão: que horror, que incrível, que ato mais atroz!!!  Estou contigo Milla, pois eu também me vejo defendendo a humanidade por causa daquela mulher.

Expatriado

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