Cinema Oral

O Festival de Cinema do Rio rolava solto e eu estava embalada pelo clima efervescente das salas escuras da cidade. Me ocorreu a idéia de ver o que se falava em outras salas, estas não tão escuras, mas enevoadas o suficiente para que não se vejam os outros cinéfilos presentes. Entrei numa sala de bate-papo (chat) de cinema da UOL. A idéia era conversar sobre os filmes que passavam. Conhecer a galera.

Os chats são frequentados por personagens de fiel assiduidade. A conversa é meio desordenada. Mas quem sou eu para buscar arrumação na Internet? Me surpreendeu que a sala tenha tanta gente (cerca de 25 em média) e pouca conversa aconteça para todos os presentes ouvirem. O que se vê (ou, na verdade, não se vê e nem se escuta) é o pessoal cochichando "reservadamente". Assim, quem chega na sala encontra uma multidão calada e um ou outro, mais agitado, gritando palavras de ordem do meio cinematográfico.

O cast da sala é muito bom. Aquilo é filme para 100 milhões de dólares. Você encontra Julia Roberts, Spielberg, Stephen King, Skywalker e a lista não tem fim. Eles dizem que alguns se conhecem e se vêm do lado de cá da realidade. Os encontros nas filas de cinema são comuns. Fiquei com a impressão que o grupo tem uma divisão clara. Uma parte está ali para jogar conversa fora (no bom sentido) sobre cinema. Os filmes de terror têm uma platéia fiel e animada. Parecem ser os mais jovens. E outro grupo, possivelmente mais maduros (eu não vou escrever "velhos" tá!), que demonstram a saudável intenção de conhecer pessoas através de papos sobre cinema. Sem dúvida falar sobre filmes é apropriado para se identificar uma criatura dentro do emaranhado da rede.

Conversa? Aí é que a coisa se mostra interessante. Você começa a falar sobre um filme ou diretor e, quase que junto, te dá aquela coceirinha de saber mais sobre o ator que interpreta o artista famoso do outro lado do papo. É homem ou mulher? Jovem ou velho? É inevitável. As vezes a conversa é rala, se restringindo a dizer que Woody Allen é ótimo, que o Tango de Saura é lindo, que as mulheres de Almodóvar são deliciosamente histéricas. Mas, quando o outro faz um comentário inteligente, aquilo puxa uma cordinha que te "remete" a buscar o que ou quem pode ver as coisas daquele jeito. Os papos vão rolando e, com o tempo, você se vê desbragadamente trocando confidências com seu parceiro no papo reservado. Confidências?! A verdade? Este é o apelo e o defeito da conversa na rede. Não existe um servidor seguro que me garanta que o rapaz inteligente com quem falo, espirituoso, com refinado senso de humor, não é apenas um deputado típico, com sua motosserra, esperando pela oportunidade de fazer um carpaccio com meu corpinho querido.

Com o passar do tempo, o cinema fica em segundo plano. Os personagens do chat e seus atores são material mais atraente. Fui picado pelo mistério do teclado desconhecido. Há algum fascínio no jogo de detalhes que se monta ao longo das conversas. Eu – muito apropriadamente – estou lendo Konfidenz, de Ariel Dorfman, cujo tema é confiança, falsidade, curiosidade, um desconhecido do outro lado da linha telefônica, coisas tão presentes numa sala de bate-papo. Como "extrair os dados mais recônditos"? Como enganar o outro? Diz o personagem Suzana em Konfidenz: "Para se enganar com elegância é preciso rodear-se de verdades parciais." Eu entrei no jogo e fiquei com certa preferência pelos personagens oriundos do cinema francês. Tem um Gerard Depardieu com um papo elegante e humor idem. Leitor de Rilke. Bastante sedutor. Mas que vai logo declarando ser casado. Que pena. Tem a Hanna Barbera. Uma personalidade de Tom&Jerry. Agitada. Rápida nas perguntas. Meio ressabiada com as minhas. Uma outra moça começou me mandando o e-mail. Depois, me perguntou se eu era o Vinicius. Isto é que é um estilo ousado: atira, depois pergunta.

Como vêem, fui ver o cinema oral e acabei caindo na arapuca do papo virtual. Teve um nickname que chamou atenção. É o t4truth. Tudo a ver com o mistério do chat. Com o F for Fake de Welles. Com nossa paranóia traduzida no cinema por Show de Truman, 13o andar, Matrix, ExistenZ e tantos outros.

- Eugenia Corazon -


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03outubro1999
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