A carroça e o celular
Procurava uma maneira de resumir os acontecimentos do ano de 1999 em nosso país. Resumir é tarefa difícil. Quem sintetiza os eventos de um ano inteiro se arrisca a ficar influenciado pelo que aconteceu mais recentemente. As abordagens podem ser tantas. Estava enrolado. Mas a televisão ajudou. Um veículo de comunicação tão importante, voltado para o grande público, pode, acidentalmente, produzir a síntese desejada. Foi o que aconteceu. Acho que o inconsciente coletivo acabou por transbordar pela TV. Estava eu prostrado no sofá, zapeando na TV por assinatura, quando me deparei com a propaganda institucional da Anatel – Agência Nacional de Telecomunicações. Era o que eu precisava. O anúncio é assim: uma carroça puxada por um cavalo é conduzida por um rapaz, típico representante dos descamisados, com uma placa de madeira presa atrás da caçamba, onde, com letras pintadas a mão, se oferece serviço de mudanças. Uma versão do "a frete" com estilo rural. Então – acontece – toca o telefone celular! O rapaz, como qualquer mauricinho da Barra, saca de seu aparelho e, num piscar de olhos, se transforma em símbolo do progresso brasileiro. Nem tanto. A peça publicitária realmente é um símbolo, mas sua leitura pode ser outra. Se deixarmos de lado o apelo do contraste entre o trabalhador marginal que ainda usa carroça e o milagre tecnológico do aparelho telefônico celular, o que se vê? Ora, esse é o Brasil resumido! Ali tudo é pobre: a carroça, as letras ingênuas na placa, as roupas do condutor. O rapaz é o povo vivendo com problemas de emprego ou em atividades informais. Vai ver que ele é um dos que, no começo do governo FHC, tinha um emprego. Pode ser um engenheiro desempregado. Quem sabe? Só uma pequena parte da imagem passa sucesso, progresso, desenvolvimento: o celular! Ali está representada a minoria abastada. A riqueza concentrada do país. O sucesso controlado por poucos. A miséria geral está bem descrita pelas estatísticas. Seja pelos quase 2 milhões de desempregados da Cidade de São Paulo ou pela informação trazida pelo jornal de ontem de que há 48 milhões de brasileiros miseráveis. Entenda-se que miserável é aquele que faz parte de uma família típica de 4 pessoas que vive com 2 salários mínimos por mês (não chega a US$150). Uma fartura! Mas, será que não houve conquistas? Claro. Vejamos: - O discurso simplificador vem conquistando os corações e mentes do povo. Conquistou-se a impressão geral de que a globalização é a solução de todos os nossos problemas. - Convenceu-se a população de que os governantes não precisam gerir o patrimônio público. Basta vendê-lo à iniciativa privada. - Conquistamos a anestesia geral. Os abastados são hoje cretinos sem peso na consciência. Podem fechar os olhos para a deterioração geral do país e dormir tranqüilos. - E, a maior conquista, cada brasileiro, mesmo sabendo que não tem atendimento de saúde decente, que seus filhos não têm educação pública, pode, a preços módicos, ter um celular no bolso. Não é o máximo? Viva o Brasil. Quase esqueço: apesar de todo meu pessimismo, desejo a todos um feliz ano novo. - Tirésias da Silva - |
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