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Recentemente, esbarrei, na tevê por cabo, com o filme Terra de Sombras (Shadowlands, 1993), obra de especial sensibilidade, com diálogos memoráveis e elenco de raro equilíbrio, liderado por Anthony Hopkins interpretando o escritor C.S. Lewis em seu belo romance com a também escritora Joy Davidman. Hopkins estava afiado. Recém saído de outra grande interpretação em Vestígios do Tempo, filme do mesmo ano, o ator inglês exibe maestria na interpretação de sutis emoções. Um filme grandioso, bem no estilo do diretor Richard Attenborough, abordando temas profundos tais como: felicidade, relacionamento, amor, deus, morte e a perda de um ente querido. É filme para ver e rever.
Em dado momento da história, Lewis, instigado a rememorar uma grande perda, relata sua experiência, aos 9 anos, quando do falecimento de sua mãe. O escritor acrescenta o detalhe banal de que nessa época ele tinha dor de dente e queria o colo da mãe, mas ela não estava mais lá. Fora do contexto do filme a cena tem pouca força, mas, para mim, que perdera minha mãe na véspera daquele dia, levada por longa enfermidade, este momento do filme foi marcante. Surpreso notei que as mais fortes saudades que rondavam minha cabeça naqueles momentos de despedida de mamãe se remetiam ao passado de minha infância. Já sou adulto. Tenho filhos grandes. Mas as imagens que me voltavam e em que eu referenciava minha mãe em sua partida eram lembranças da adolescência. Foi dessa época de minha vida que ficaram as mais fortes impressões. Talvez seja assim mesmo. Seja qual for a idade, quando perdemos nossa mãe, nos fica a saudade da mãe perdida na juventude. Ou será saudade da mãe que perdemos junto com nossa juventude? Ou será que perdemos o colo que nunca quisemos deixar de dispor? A saudade tem muitas formas.
Mamãe foi, por um dever de posição numa estrutura fortemente patriarcal, uma figura menor. Meu pai era o determinante maior da direção da família. Ela era a provedora de carinho e contemporização. À mãe cabia acalentar e aceitar as fraquezas, ao pai, estimular a força e as ações. Ela curava os efeitos da vida e cuidava do dia-a-dia da casa. Ficou a imagem de mamãe em casa assistindo de perto os longos – a infância felizmente passa devagar – anos de ir à escola, fazer deveres e sair para (engraçado dizer) brincar. A ela cabia o papel dos bastidores. Falar a mamãe para que ela falasse a papai para, só então, o assunto ser discutido diretamente, fez parte da burocracia de meu sistema familiar. Escavando a memória, noto que, rapidamente, os anos recentes de sua doença perdem nitidez. Por outro lado, a lembrança da infância, sua presença, seu carinho, ganham contraste e distinção. Hoje, é mais forte a lembrança das infinitas manhãs, bem cedo (no inverno ainda era escuro, mesmo no Rio de Janeiro) quando ela se levantava para preparar o mingau de aveia que me manteria acordado na escola até o recreio. Ou, quando me interrompia a jornada de estudo chegando à porta do quarto para me perguntar se queria um copo d’água. Este ritual simples era sua maneira de demonstrar a preocupação e valorizar a solenidade que meu investimento nos estudos significava. Curiosa nossa maneira de reter o passado. Em parte deve haver benevolência filial, mas são estas lembranças que me vêm a cabeça. Aqueles momentos são mais fortes hoje do que tantas outras as horas que ela passou junto de mim, sendo mais vivas até do que sua presença cuidando de mim durante as doenças infantis. O mingau de aveia deve ser o detalhe banal que ficará comigo na saudade de mamãe.
Tive a felicidade de perder minha mãe depois de velho. Ela foi abençoada em partir antes de seus filhos e netos. Mamãe teve papel discreto em comparação com o almejado pela mulher atual. A discrição foi a tônica dessa mulher, que ela manteve até o último momento, quando lentamente se retirou de cena sem estardalhaço, sem violência, apenas se foi.